Alô.

Apesar do calor, Dezembro é meu mês favorito, e mesmo diante das controvérsias conhecidas, eu gosto do Natal.

É sagrado pra mim todo dia 24 de Dezembro ir até o mercado, me esgueirar por entre as famílias que protagonizam a mais feliz correria do ano e comprar chocolate caro pra levar pra casa e comer assistindo à minha playlist natalina, que se constitui de:

Duro de Matar, Herói de Brinquedo, De Olhos Bem Fechados e o Especial do Chaves na casa do Seu Barriga. Nessa ordem.

Stanley Kubrick é meu diretor de cinema favorito, e seu último filme, De Olhos Bem Fechados, lançado em 1999 e estrelado por Tom Cruise e Nicole Kidman, tende a não ser tão venerado pelos fãs do cineasta, mas figura entre meus favoritos da vida.

O texto a seguir representa a parte I da nossa conversa é o mais livre de spoilers possível.

O que é “De Olhos Bem Fechados”?

Tom Cruise é Bill Hartford, um médico bonito, rico e  bem-sucedido casado com Alice, uma linda mulher interpretada por Nicole Kidman. Eles vivem em um apartamento luxuoso, possuem uma adorável filha estudiosa e a vida parece irretocável.

Certa noite, deixam a garotinha perfeita com a babá perfeita depois de um diálogo mecanicamente perfeito de família perfeita e partem para uma festa realizada pelo amigo Victor Ziegler (Sydney Pollack), e é aí que o diretor do comercial de margarina grita “corta”.

Tanto Bill quanto Alice são expostos à chances reais de trair o companheiro. Embora nenhum o faça, Bill acaba sumindo da festa para socorrer o anfitrião, que passava por uma situação extremamente desagradável que nos dias de hoje, caso descoberta seria digna de vídeo monetizado de desculpas em um dos banheiros da mansão. No dia seguinte, Alice questiona o desaparecimento do marido na noite anterior enquanto fazem… coisas de casal conservador.

Quando Bill pensa devolver o problema ao perguntar quem era o charmoso europeu que tirou Alice para dançar, acaba nocauteado pela informação de que Alice já pensou seriamente não só em traí-lo, como em trocá-lo por um jovem militar que conhecera repentinamente em uma viagem de férias. Incrédulo, Bill contesta o relato de Alice, alegando que nunca pensou que ela pudesse querer traí-lo e tampouco já sentiu ciúmes alguma vez, pois em sua visão, mulheres buscam em seus parceiros apenas segurança e comprometimento, conseguindo apenas arrancar da esposa um violento ataque de riso.

“Se vocês homens soubessem…”

O médico, agora assombrado pela revelação de que mulheres têm tantos e tão criativos desejos sexuais quanto homens, precisa sair de repente para atender uma emergência profissional. Começa então uma saga noite adentro pelo desbravamento dos próprios princípios, da raiva, do absurdo e de lugares onde jamais deveria estar e podem custar-lhe até mesmo a vida.

Tá, mas por que eu gosto?

As sociedades secretas como um todo, das quais pouco se sabe, podem muito bem de fato controlar alguma coisa, como podem não passar de uma fantasia sustentada por quem tem condições para bancar tais fetiches, mas assim como o sobrenatural de maneira geral, fornecem muito material para a construção de realidades ficcionais interessantes, e esse filme é um destes casos.

Além disso, a atmosfera tétrica, as cenas de rituais mascarados bizarros em mansões colossais, as luzes da noite novaiorquina, o caminhar da trama e a assustadora trilha sonora de Jocelyn Pook (com alguns trechos de Ligeti) são hipóniticos. A sensação de estar assistindo de camarote o desmonte das camadas do intocável altar da riqueza e das fachadas sociais te faz pensar em pessoas, conhecidas do dia a dia ou da TV. E ainda, as centenas de elementos distribuídos ao longo dos 160 minutos da película costumam me atrair a atenção para algo antes despercebido a cada vez que assisto esse filme de novo.

Traumnovelle

Como muitos dos filmes de Kubrick, “De Olhos Bem Fechados” é baseado em um romance. Trata-se de “Traumnovelle”, lançado em 1926 e escrito pelo austríaco Arthur Schnitzler. A premissa é basicamente a mesma e a obra inclusive conta com outras duas adaptações, homônimas e mais fieis, lançada em 1969 sob direção de Wolfgang Glück e outra de 1989, dirigida por Mario Bianchi. No Brasil, o livro foi lançado com o título de “Breve Romance de Sonho”.

Embora realizada apenas no fim dos anos 1990, a ideia de adaptar Traumnovelle já habitava os planos do diretor ainda na década de 1960, quando lera o livro pela primeira vez.

Produção, Lançamento e Polêmicas

Apesar de sua carreira ter durado 48 anos, Stanley Kubrick lançou apenas 13 longas-metragem. Steven Spielberg, a título de comparação, assinou 32 trabalhos no mesmo espaço de tempo.

Alguns esboços foram feitos ainda na década de 1960 e 70, chegando a considerar Woody Allen, Bill Murray e até mesmo Steve Martin para o papel principal, em busca de um ator que atendesse as demandas de um Bill Hartford mais cômico, visando originalmente um contexto voltado ao humor ácido, como visto em “Doutor Fantástico” (“Doctor Strangelove”, no original. Alô, fãs de Metal Gear?), de 1964. Entretanto, a natureza ultra-detalhista e criteriosa do diretor fizeram com que o projeto ocasionalmente voltasse à gaveta.

Depois do lançamento de “Nascido Para Matar” (“Full Metal Jacket”, 1987), Kubrick chegou a esboçar mais duas produções que foram abandonadas ainda em seus estágios iniciais e retomou a adaptação do conto austríaco. Com a ajuda de Frederic Raphael, Kubrick transportou a história da Viena do início do Século XX para a Nova York dos tempos contemporâneos à produção.

Os protagonistas não foram escolhidos à toa. Uma das exigências de Kubrick era de que a dupla fosse casada na vida real. Cruise e Kidman não só cumpriam essa condição como eram badaladíssimos alvos de paparazzis e do imaginário popular. Brangelina antes de Brangelina, caíam como uma luva na proposta do filme.

Como Kubrick tinha medo de aviões, tudo foi rodado na Inglaterra, mas não sem que ele construísse a mais perfeita réplica possível do Greenwich Village nos arredores de Londres, a ponto de um designer ficar encarregado de viajar aos Estados Unidos para medir a largura das ruas e tamanho exato das bancas de jornal e seu espaçamento. Tom Cruise e Nicole Kidman chegaram à Europa preparados para seis meses de trabalho, entretanto, o processo se estendeu e alcançou a absurda marca de 400 dias contínuos de filmagem, sendo até hoje o recordista de tal categoria do Guinness Book.

O imensurável perfeccionismo do diretor levou os atores ao esgotamento. Harvey Keitel, originalmente escalado para o papel de Victor Ziegler, simplesmente desistiu e foi embora, dando lugar a Sydney Pollack. Existem ainda relatos de que Tom Cruise teria adquirido uma úlcera e beirado a centena de takes para cenas simples como caminhar pela rua ou atravessar uma porta. Na visão de Kubrick, a exaustão física e mental fazia com que os atores se esquecessem da presença das câmeras e interpretassem em um estado de consciência instintivo, trazendo à performance uma essência que nem os atores, nem o diretor sabiam exatamente qual era antes de alcançar. Segundo Cruise, não havia um objetivo claro na hora de filmar. A busca por esse comportamento cotidiano inconsciente foi tão criteriosa que a decoração da casa cenográfica foi escolhida pelos próprios protagonistas.

Kubrick teria ainda conquistado a confiança do casal para que eles confidenciassem a ele medos e segredos do casamento, os quais o diretor usava para provocá-los. Cruise e Kidman eram dirigidos separadamente e proibidos de trocar informações. Apesar das práticas duvidosas, os relatos do casal sempre foram positivos. “Era como brincar com dinamite”, explicou Cruise em uma entrevista.

Estréia, Versão Final e a Morte de Kubrick

Existem muitas teorias acerca das mensangens subliminares espalhadas por Kubrick no filme. De símbolos pagãos a easter-eggs, nomes e notícias de jornal, muitos são os detalhes que podem passar desapercebidos nas primeiras vezes em que se assiste “De Olhos Bem Fechados”.

Há quem diga que todo o projeto tinha como intenção expor práticas reais de sociedades secretas estadunidenses. Tais alegações ganham uma impensável relevância e alimentam conspiracionistas que acreditam em vingança ou queima de arquivo quando o diretor falece aos 70 anos apenas seis dias depois de entregar o filme à Warner Bros.

É sabido que Kubrick não havia terminado de editar o filme a seu gosto, e mais de duas décadas depois, ainda correm boatos de que cerca de 30 minutos da película tenham sido cortados. É fato que a versão final não era aprovada pelo diretor, mas não existem confirmações sobre a exclusão de cenas.

E aí? Convencido a sair pelas ruas do Village em busca do desconhecido, seja ele interior ou exterior?

“De Olhos Bem Fechados” pode ser alugado no Youtube por R$7,90.

Nos vemos na parte II, com spoilers, mais opiniões e algumas das muitas interpretações que a última obra de Stanley Kubrick nos proporciona.