No dia 10 de Fevereiro de 2021, Bella Ramsey e Pedro Pascal foram confirmados respectivamente como Ellie e Joel na adaptação de The Last of Us realizada pela HBO. Sem qualquer embasamento, a internet fez o que sabe fazer de melhor: se escondeu atrás de avatares de anime, estacionou o carro, vestiu o Ray-Ban, e xingou.

Quando a primeira imagem da produção foi liberada, a rede cravou que a fotografia (de um frame isolado totalmente fora de contexto) era ruim, Bella Ramsey não se parecia com a Ellie dos games e tudo era uma bosta porque sim.

Um ano e meio depois, o primeiro teaser apresentou o universo criado por Neil Druckman ao som de Alone And Forsaken, de Hank Williams, e em menos de dois minutos ficou claro que ao menos em uma espiada inicial, a obra parecia caminhar de encontro ao que vimos nos jogos: as cidades destruídas, a amargura do protagonista, as ameaças da jornada e até mesmo uma pequena frase, que com seu significado gigante, resume toda a obra:

Salve Quem Você Puder Salvar.

Terminados os 9 episódios da primeira temporada já com a segunda em pré-produção, muitos se renderam, e outros fizeram questão de investir uma hora semanalmente pra seguir assistindo algo do qual só reclamavam; e agora a gente pode tentar entender:

Por que é que a adaptação de The Last of Us deu certo?

Será que é porque foi vigiada de perto pelo criador da obra original? É mérito da HBO? Jogos funcionam melhor como séries do que como filmes?

Se eu soubesse, provavelmente seria um produtor de sucesso escrevendo isso na sacada de um hotel na Suíça, mas serei obrigado a me limitar a apenas cogitar, embaixo de um ventilador no interior de São Paulo; e eu acho que é porque…

Trataram The Last of Us como o que realmente é: uma obra séria; não no sentido adulto da coisa, mas enquanto arte pertencente à uma mídia.


Videogames como Mídia

Foto: Reprodução

Guillermo del Toro repetiu discurso após discurso na temporada de premiações 2023 que a animação é uma mídia, e não apenas um gênero voltado às crianças; e é exatamente isso que o videogame é também.

Da mesma maneira que existem games que visam reunir dezenas de pessoas em volta de um combate multiplayer destilando todo tipo de preconceito, xingando a mãe do amiguinho e não aceitando perder tendo comprometimento apenas com a diversão como se fossem um grande jogo de truco pela internet, existem opções para pessoas que querem quebrar a cabeça com enigmas complexos, se emocionar, se assustar, embarcar em aventuras épicas ou simplesmente ser um pão. Note como estas descrições se encaixam também em filmes, músicas, histórias em quadrinhos e até mesmo nos todo-poderosos e intocáveis livros.

Todo tipo de experiência é alcançável através do videogame: os populares first person shooters podem te botar no front de alguma guerra histórica, te levar a outros planetas, ou te transportar para o futuro; você pode se tornar um exército de uma pessoa só e passar por cima de milhares de inimigos, ou um ser insignificante que vai apanhar e morrer muito antes de conseguir avançar minimamente. Ser um ídolo da Formula 1? Sim! Comandante de um exército de Orcs? Sim. Prefeito de megalópole? Também. Assassino de aluguel, engenheiro espacial, figura histórica, tudo é possível! Acontece que nem todo mundo sabe disso.

As décadas se passam e os videogames, que já movimentam mais dinheiro que a indústria da música e do cinema combinados, continuam sendo vistos como brinquedos. Muita gente não consegue entender a diferença entre Mario Bros. e Braid, que apesar de também platformer, traz mecânicas completamente diferentes e uma narrativa muito mais densa. Os incomparáveis Call of Duty e Dear Esther são jogados em primeira pessoa, e é aí que as adaptações parecem direcionar seus esforços para objetivos que não fazem tanto sentido.

A concepção básica do jogador de videogame é a de um adolescente com um fone de ouvido piscante se remexendo numa cadeira. Apesar de não estar exatamente errada, seria como limitar consumidores de cinema a pessoas que vão em pré-estreias de blockbuster vestindo cosplay; mas assim como existem sessões lotadas de senhores e senhoras no Belas Artes, há jogadores que procuram outras coisas.

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O Game

The Last of Us não é exatamente um jogo pequeno, entretanto, se envereda por caminhos não tão assegurados.

Lançado em 2013 exclusivamente para o Playstation 3, The Last of Us chegou pouco depois que a Sony havia entregado God of War III, um hack ’n’ slash narrado nos moldes de uma tragédia grega no ritmo dos Anos 2000. A Blizzard entregara Diablo 3 mais de uma década após o segundo episódio da saga e Dark Souls estabelecia um novo gênero. Entretanto, o Video Game Awards 2012 premiou The Walking Dead, da Telltale, como o jogo do ano. Totalmente voltado à narrativa, o episódico protagonizado pela garota Clementine faturou o maior prêmio da indústria até então em cima de figurões como Dishonored e Assassin’s Creed. O próprio The Last of Us participou da edição daquele ano, sendo derrotado na categoria Game Mais Aguardado por GTA 5.

Se encaixando no subgênero de zumbis que já se dirigia a um declínio natural, o game da Naughty Dog, além de apresentar uma ótima jogabilidade e uma bela campanha, prezou por uma extraordinária narrativa com grandes atuações. No fim, The Last of Us não era sobre monstros ou apocalipse, mas sim sobre pessoas.

Inúmeros games que também possuem tramas excepcionais foram transformados em filmes, entretanto, fica a impressão que quem encomendava esses longas sequer havia segurado um controle nas mãos, e achava que games se limitavam ao adolescente do fone piscante. Foi assim que Max Payne, um intenso e complexo drama policial escrito pelo genial Sam Lake se transformou em um filme lamentável que parecia querer ser uma mistura de Triple X e Sin City com atuações radicais para adolescentesao som de Nu Metal. Outras obras com potencial acabaram sofrendo o mesmo destino, como foi o caso de Warcraft (2016). Faltou, e muito, enxergar tudo o que havia além do bullet time.

Em 2006, Silent Hill foi um ponto fora da curva, entregando qualidade e demonstrando uma maior compreensão do material original, ainda que tivesse de se adequar às limitações impostas por Hollywood.

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A Série

Conversas sobre uma adaptação de The Last of Us começaram ainda em 2014, um ano após o lançamento do game. O projeto inicial visava um longa-metragem possivelmente dirigido por Sam Raimi. Entretanto, Neil Druckman desistiu da empreitada após a Screen Gems (produtora conhecida por terrores de shopping e pela série Underworld) visionar algo “mais sexy” para a adaptação. Possivelmente, aqui foi onde a franquia se salvou de se tornar mais uma daquelas adaptações repletas de adrenalina, calças de cintura baixa e protagonistas fazendo cara de quem está fingindo que é fodão. É nítido que quem encabeçou a proposta desconhece, ou simplesmente ignora, a abordagem dos videogames mencionada anteriormente. Em 2016, Neil Druckman relatou em entrevista que uma table-read, prática onde atores se reúnem e leem o roteiro, havia acontecido, mas que esta era a última novidade desde então.

Tudo seguiu em silêncio até que em 2018, quando Craig Mazin, showrunner da série, obteve acesso a uma lista de jogos que a Playstation Productions planejava levar às telonas, mas se desapontou ao encontrar The Last of Us, pois era fã do game e sentia que a jornada de Ellie e Joel merecia ser adaptada para a TV, com mais tempo de tela e um ritmo mais lento. Meses depois, uma amiga em comum acabou apresentando os dois, e Druckman, grande fã da ótima Chernobyl, foi convencido por Mazin; e aí que deu bom.

É desnecessário mencionar as inúmeras qualidades do game ou da série; entretanto, é gratificante ver o quanto Mazin, na posição de Showrunner sob o olhar atento de Druckman, soube direcionar o time de diretores, atores, e toda a equipe técnica com a seriedade que The Last of Us merece. Foram necessários 8 anos de conversas e desistências para que o modelo ideal fosse aprovado, livre de quaisquer estereótipos gamers, para criar uma das melhores séries dos últimos tempos; que por mais que fique devendo características importantes dos games como mais combates, estendeu esta bela história a uma nova mídia que conquistou inúmeras pessoas que sequer gostam de videogame.

Nos últimos dias, Super Mario Bros.: O Filme, estreou nos cinemas mundiais sendo celebrado entre os fãs, embora tenha críticas mistas. Tal como The Last of Us, o filme do bigodudo teve de ser inteiramente aprovado por seu criador Shigeru Miyamoto.

Será o respeito ao material original o segredo, afinal? Se é que existe algum…

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