Em 7 de Agosto de 2023 nos despedimos de William Friedkin, que faleceu aos 87 anos por conta de complicações de uma insuficiência cardíaca. Frequentemente lembrado por O Exorcista, o diretor foi um dos principais nomes do movimento Nova Hollywood e exerceu extrema influência no cinema estadunidense do início dos anos 1970, que subverteu regras e costumes da indústria norte-americana sob influência de artistas do mundo todo enquanto tomava o controle criativo das mãos dos estúdios.

Com a queda no faturamento dos grandes épicos, jovens realizadores conquistaram a liberdade de fazer filmes à sua maneira, com poucos recursos e mais próximos do mundo real, abordando tópicos sociais e incorporando questionamentos e desconfortos. Os cineastas também se muniram do avanço tecnológico que os permitia filmar em 35mm longe dos caríssimos estúdios, e incorporaram o uso de locações reais às suas obras, o que colaborou ainda mais para o tom “documental” característico do movimento e principalmente de Friedkin.

Talvez não seja um equívoco dizer que a maioria das pessoas desconhece o trabalho de Friedkin além de O Exorcista, dada a importância do filme de 1973, e por isso, essa lista visa justamente apresentar outros trabalhos deste grande e obstinado diretor.

Foto: Reprodução

The Boys in the Band (1970)

Baseado na peça teatral de Mart Crowley, a adaptação cinematográfica de Friedkin escala o mesmo elenco dos palcos para narrar os eventos de uma noite novaiorquina na qual oito amigos se reúnem para comemorar o aniversário de um deles. O que era pra ser diversão se converte em conflito e tensão quando Alan, amigo do anfitrião Michael, aparece de surpresa. O grupo, abertamente gay, precisa encarar o preconceito de Alan, que invade um espaço que não lhe pertence e se acha digno de impor suas percepções.

Afiadíssimos, os atores exibem uma naturalidade ímpar dando vida a seus personagens em longas e rebuscadas conversas executadas com perfeição. Através de suas distintas e poderosas personalidades, todos somam às inúmeras e importantíssimas discussões propostas pela narrativa. Dá tanto gosto vê-los trabalhando que você vai se flagrar rindo e respondendo às perguntas como se fosse parte da conversa.

Movimentos de câmera, cortes e enquadramentos acomodam as qualidades do roteiro na linguagem cinematográfica e compensam a ausência física dos atores, alinhando-se com a fluidez da história.

Mais de cinquenta anos depois, muitos pontos da obra podem ter se tornado datados, mas sem dúvidas, The Boys in the Band continua relevante e carregado de significados.

Em 2020, a Netflix lançou uma nova adaptação da série, estrelada por Jim Parsons e Brian Hutchison sob direção de Joe Mantello.

Foto: Reprodução

Operação França (1971)

Inspirado no livro de mesmo nome escrito por Ernest Tidyman, o longa é baseado em fatos e acompanha os policiais Jimmy Doyle (Gene Hackman) e Buddy Russo (Roy Scheider) no encalço de um grupo de traficantes que importam heroína da França para os Estados Unidos. Muito longe de serem pessoas exemplares, os investigadores se utilizam de todos os métodos possíveis para identificar as mentes por trás da organização criminosa.

Decidido a realizar um projeto que atendesse às suas grandes ambições, Friedkin ouviu as recomendações de seu então sogro Howard Hawks (diretor do Scarface original, de 1932) e fez um filme com cenas grandiosas. A épica perseguição de carros no Brooklyn foi filmada com veículos de verdade em movimento entre transeuntes reais que sequer sabiam que havia um filme sendo rodado ali. Inúmeros acidentes quase aconteceram e tudo está eternizado no filme.

Com um tom bastante realista, que retrata verdades doloridas e impurezas da vida e das pessoas, Operação França desmonta estereótipos de índole pura e heróica das grandes corporações. Câmera, fotografia, edição, trilha sonora; tudo colabora com o característico tom documental de Friedkin, que conduz a narrativa com o detalhismo e crueza absorvidas do cinema europeu e asiático.

Obcecado pelo controle da produção e disposto a quebrar paradigmas, William Friedkin sacramentou atributos que não só norteariam o cinema policial, como o cinema estadunidense no geral pelos próximos anos.

Citado como um dos filmes favoritos dos lendários Akira Kurosawa e Steven Spielberg, Operação França também foi o motivo pelo qual Brad Pitt quis atuar em Se7en, de David Fincher.

Na noite de 10 de Abril de 1972, a 44ª Cerimônia do Oscar condecorou Operação França com a estatueta de Melhor Filme. Gene Hackman levou o prêmio de Melhor Ator e William Friedkin, de Melhor Diretor. Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Edição completaram a lista das cinco estatuetas ostentadas pelo longa.

William Friedkin agora era o Rei Absoluto de Hollywood e poderia fazer o filme que quisesse. Dois anos depois lançaria O Exorcista, o único filme de terror indicado ao prêmio máximo da Academia até 2018, quando passou a dividir o posto com Corra!, de Jordan Peele.

Foto: Reprodução

Comboio do Medo (1977)

Quatro homens oriundos de diferentes partes do mundo se veem exilados em algum lugar da América do Sul após terem sido obrigados a desaparecer de seus lares por questões de vida ou morte. Vítimas de um governo ditatorial corrupto e da exploração por parte de uma grande petroleira estadunidense que suga recursos naturais e exaure a força de trabalho dos cidadãos, eles encontram em uma missão suicida a chance de melhorar, mesmo que minimamente, sua qualidade de vida.

Jackie (Roy Scheider), Victor (Bruno Cremer), Nilo (Francisco Rabal) e Kassem (Amidou) precisam conduzir um carregamento de nitroglicerina através de densas florestas que mal possuem estradas para, caso sobrevivam, levar uma boa quantia em dinheiro e a possibilidade de obter novos passaportes e sair dali.

Longas e detalhadas tomadas da vida local se intercalam com situações extremamente tensas filmadas por um mestre do suspense que não parece possuir vontade alguma de poupar seus protagonistas. Friedkin mais uma vez se usa de sua técnica documental para contar uma história crua que exibe sem pudor algum os resultados da exploração de uma nação. Outro ponto de destaque é a trilha sonora composta pelos alemães do Tangerine Dream, importante grupo que, ao lado do Kraftwerk, sedimentou a estética da música eletrônica.

Comboio do Medo foi o começo do fim para Friedkin, que viu seu mais ambicioso e caótico projeto escorrer bilheterias abaixo por uma série de equívocos: o título original, “Sorcerer” – do português “feiticeiro”, fez com que a audiência achasse se tratar de um novo terror do diretor de O Exorcista, culminando numa perda de interesse quando a verdadeira temática era descoberta. Além disso, boa parte do ato inicial do filme é falado em francês, o que afastou o público estadunidense, conhecido por não possuir o hábito de consumir conteúdo audiovisual legendado. Como se não bastasse, o filme teve de dividir corredores com Star Wars, que tomou as salas de assalto no mundo todo.

Rechaçado na época, Comboio do Medo teve seu valor reconhecido com o passar do tempo, e muito do que se vê em tela foi usado em filmes de ação das décadas seguintes.

Foto: Reprodução

Dali em diante, Friedkin perderia as regalias hollywoodianas conquistadas através de seus sucessos anteriores e se veria obrigado a adaptar suas escolhas e metodologias de trabalho. Alguns filmes lançados nos anos seguintes que valem uma conferida são:

Parceiros da Noite (1980): Al Pacino interpreta um policial no encalço de um serial killer que atrai vítimas de boates BDSM a hotéis baratos e as executa a facadas, despejando seus cadáveres esquartejados no Rio Hudson. Polêmico e reprovado na época pelo modo como a comunidade LGBTQIAP+ foi representada, o longa foi revisitado em anos seguintes e teve seu valor reconhecido. Parceiros da Noite é um thriller bastante obscuro e denso que nos põe frente a frente com um homem que pode pagar um preço alto demais por mergulhar de cabeça no trabalho, se perdendo em realidades distantes da sua.

Viver e Morrer em Los Angeles (1985): Friedkin sempre ressaltou seu interesse por histórias de policiais imperfeitos, e aqui temos mais uma delas. O agente federal Richard Chance não mede esforços para capturar um falsificador, sem se importar com os resultados desastrosos de sua caçada imprudente impactando tudo à sua volta. Igualmente urbano mas mais colorido e alinhado com a estética oitentista californiana, Viver e Morrer em Los Angeles é estrelado por William Petersen (CSI) e também foi um dos primeiros trabalhos de Williem Dafoe e John Turturro. Uma obra obrigatória para fãs de Miami Vice.

Killer Joe (2011): Mentalize o sonho americano. Agora, pense nele dando errado. Não. Mais errado… mais errado. Isso, é Killer Joe. Em seu primeiro grande passo para fora das comédias românticas, Matthew McCounaghey interpreta Joe Cooper, um xerife que nas horas vagas atua como matador de aluguel e se vê contratado por um pai e seu filho para matar a própria mãe. Repleto de cenas chocantes, violência, absurdos e humor mórbido, Killer Joe nos lembra do quão desmedido e afrontoso Friedkin podia ser. Juno Temple, Emile Hirsch, Thomas Haden Church e Gina Gershon completam o elenco principal.

Como última recomendação, podemos falar de The People vs. Paul Crump (1962): O primeiro filme dirigido por Friedkin se trata de um documentário, gênero que viria a ser dominado pelo cineasta nos anos seguintes. No relato, é apresentada a história de Paul Crump, um homem negro preso pelo suposto envolvimento em um latrocínio. Crítico da pena de morte e do sistema carcerário dos Estados Unidos, Friedkin usa a linguagem cinematográfica como ferramenta artística e argumentativa a favor da inocência de do rapaz.