Como vimos anteriormente, Resident Evil incinerou quaisquer previsões em número de vendas e chegou inclusive a se tornar o jogo mais vendido do Playstation. Mercadologicamente, entende-se que um novo grupo de consumidores está pronto para ser explorado, e que cada dia sem um produto naquele nicho representa menores fatias deste segmento e menos faturamento.

Enquanto a Capcom trabalhava no segundo capítulo da franquia de zumbis, entraram no páreo títulos como Parasite Eve (Square, 1998) e Clock Tower 2 (Human Entertainment, 1998). A abordagem cinematográfica se estendeu a títulos menos conhecidos como Echo Night (From Software, 1998) e Galerians (Crave, 1999), e outros criadores exploraram conceitos diferentes como Kouldelka (SNK, 1999), que mesclou o horror ao RPG e Mizurna Falls (Human Entertainment, 1998), vanguardista bastante experimental no quesito de se construir uma cidade inteira com personagens interativos e inúmeras subtramas.


Uma Escolha Muito Fácil

Em 1996, um artista gráfico que havia trabalhado em International Track & Field foi convidado a ingressar no próximo título esportivo da Konami, o jogo oficial das Olimpíadas de Inverno de Nagano. Keiichiro Toyama, entretanto, escolheu embarcar num projeto um tanto quanto mais misterioso que lhe foi ofertado: um game de terror, do qual se tornaria diretor.

O conceito de jogos em 3D ainda estava em consolidação, e o gênero do horror nos videogames mainstream havia acabado de passar por sua maior expansão desde as origens. O terreno podia ser fértil, e Toyama, junto do obstinado Takayoshi Sato, que ficaria responsável pelas CGI’s, embarcaram num longo processo criativo que envolveu, a princípio, a listagem de conceitos artísticos que os agradasse. Oriundos de escolas de arte, os desenvolvedores mergulharam em música, cinema, filosofia e literatura. Era extremamente importante que o novo jogo tivesse um forte apelo comercial no ocidente, o que só estreitou os laços do game em desenvolvimento com a obra de Stephen King. Os membros da equipe que viria a ser nomeada Team Silent viajaram aos Estados Unidos a fim de visitar a E3 – onde as prévias do jogo obtiveram um sucesso estrondoso, aumentando a confiança da Konami no projeto – mas também colher referências visuais para a vindoura trama.

Foto: Reprodução


Criação

Conceito e tecnologia andaram de mãos dadas desde o início do desenvolvimento de Silent Hill. Em busca de soluções que fossem capazes de refletir a história que queriam contar, a equipe investiu tempo e energia em pesquisas sobre ângulos de câmera e iluminação. A principal diferença para o concorrente direto da Capcom, é que Silent Hill não colocava personagens 3D sobre imagens pré-renderizadas estáticas; tudo era processado em tempo real, fossem personagens, cenários, ou até mesmo a chuva. A forte influência de O Nevoeiro, de Stephen King – o livro, e não o filme, que seria lançado apenas em 2007 – veio a calhar quando a névoa surgiu como solução técnica para mascarar as limitações do console e ainda serviu como parte essencial da narrativa. Não é que o hardware do Playstation fosse fraco, mas criar toda uma cidade em 3D e renderizá-la em tempo real era algo bastante à frente de seu tempo, e certamente foi a causa de diversas dores de cabeça ao longo da produção. O resultado fala por si só, pois um dos maiores charmes de Silent Hill é justamente explorar a cidade, sua arquitetura, ler cartazes, letreiros, e admirar o esforço e nível de detalhamento empregados.

Ao contrário de uma lenda que se popularizou na internet, a Team Silent não era composta de desenvolvedores oriundos de projetos fracassados. Alguns vieram dos já citados games esportivos da Konami, que sempre representaram uma parte indispensável do catálogo da empresa, enquanto outros vieram direto da faculdade, como é o caso de Masahiro Ito, designer de criaturas que se tornaria diretor de arte da série no futuro. Vale lembrar, ainda, que projetos de qualquer tamanho devem primeiro passar por um rigoroso crivo de aprovação antes que o financiamento seja disponibilizado, e quem o faz, jamais libera um Dólar se não for convencido de que vai receber de volta pelo menos três, embora Toyama tenha dito em entrevista que na época a liberdade criativa era muito maior e que insucessos comerciais não eram tão imperdoáveis. Lembre-se: a Konami queria ser páreo para Resident Evil no mercado dos games de horror.

Cheryl dorme no banco do passageiro. (Foto: Reprodução)

Enredo e Influências

Férias. Na companhia de Cheryl, sua filha de 7 anos, o escritor Harry Mason dirige noite adentro em direção a Silent Hill, uma pequena cidade turística no nordeste dos Estados Unidos escolhida pela própria garota. Um vulto na estrada o faz perder o controle do carro e se acidentar, perdendo a consciência. Quando acorda, já pela manhã, Harry percebe que Cheryl desapareceu e parte à sua procura pelas ruas da pequena cidade, tomadas por uma estranha neblina e neve fora de época.

Ao longo da busca, Harry explorará diferentes partes da cidade e encontrará pessoas, no mínimo, peculiares. Grandes segredos se escondem na pequena cidade de Silent Hill, que por vezes, pode ser pior que o próprio inferno.

Além da já citada inspiração em Stephen King, percebemos uma forte influência de David Lynch, principalmente de Eraserhead e Twin Peaks, com seus diálogos misteriosos de falas compassadas, personagens de trejeitos insólitos e até mesmo um pouco da arquitetura e tópicos abordados em subtramas. Alucinações do Passado, excelente filme de Adrian Lyne estrelado por Tim Robbins, também norteou esteticamente a produção. Outras influências cinematográficas incluem o giallo de Dario Argento, a repulsividade de Clive Barker e o experimentalismo de Alejandro Jodorowsky. Masahiro Ito destaca extensivamente as sensações e representações de diferentes emoções humanas presentes nestas obras.

Lisa Garland (esquerda) foi baseada na enfermeira Keating, interpretada por Tracy Thorne em O Exorcista 3.

O experiente músico e designer de som Akira Yamaoka buscou no post-punk, new wave, trip-hop e metal industrial, sonoridades diferentes do que costumava ouvir nas trilhas sonoras de games em geral. Além dessa distinção, ele conta que a sensação “fria e enferrujada” destes gêneros conversa com a história do jogo. É plenamente possível “ouvir Silent Hill” em bandas como Killing Joke, por exemplo, onde a bateria é bastante presente, vibrante e constante, munida do característico gated-reverb, enquanto diversas camadas de sintetizador servem de base para os dedilhados distorcidos e ressoantes característicos dos anos 1980. Outra forte, se não a maior influência, é o Portishead, que inclusive possui pôsteres espalhados dentro do jogo. Adrian Utley é descaradamente referenciado por Yamaoka em suas linhas de guitarra.

Jogabilidade

Assim como a imensa maioria dos survival horrors dos anos 1990, Silent Hill conta com o controverso tank control. A prática atualmente morta e sepultada no mainstream consiste em “dirigir” o personagem sempre pressionando o direcional para cima quando se deseja andar para frente, independente da direção em que ele esteja virado na tela. Habitual há 30 anos, o conceito causa confusões divertidas nos marinheiros de primeira viagem.

Além de uma variedade de armas brancas, também estão disponíveis algumas armas de fogo que causam diferentes intensidades de recuo de dano nos inimigos. A parte mais charmosa do gameplay, entretanto, não está no combate, mas sim na exploração e nos puzzles.

Embasados por diferentes áreas do conhecimento como interpretação de texto e lógica, alguns enigmas podem e vão segurar jogadores durante bons minutos. Nos capítulos seguintes, a Konami criaria duas dificuldades distintas: action e riddle, sendo a segunda, a dificuldade de resolução dos puzzles, que pode exigir do jogador profundo conhecimento da obra de Shakespeare, por exemplo.

É inegável que a jogabilidade possa ser considerada um tanto travada em alguns momentos, mas nada que comprometa a partida. Não existem lugares difíceis de se navegar do ponto de vista de movimento, e as batalhas, mesmo contra bosses, são facilmente assimiláveis, talvez com uma certeza exceção à última delas. Existem alguns movimentos engraçados, como a esquiva que Harry executa pulando para trás, mas que ainda sim são úteis. Vale reparar também na possibilidade de travar a câmera atrás da cabeça de Harry, facilitando a visualização do que há pela frente.

Foto: Reprodução


Legado

Comercialmente falando, Silent Hill nunca chegou perto de vender tanto quanto Resident Evil. Especialmente após a guinada mais pronunciada da Capcom em direção à ação, alguns capítulos da série venderam mais que a franquia Silent Hill toda, somada.

É dito que após o lançamento de Resident Evil 3, a Capcom concluiu que o nome Resident Evil era muito grande para ficar preso a um mercado mais restrito como era – e continua sendo – o do horror. Resident Evil 4, 5, e 6 representam uma investida bem-sucedida em direção a um mercado muito maior. Durante quase uma década, Resident Evil 5 foi o título mais vendido da Capcom. Hoje em dia, entretanto, vemos o remake de Resident Evil 2 e Resident Evil 7 ocupando posições mais altas, o que pode ter sido retroalimentado a partir do interesse gerado pelo quarto e quinto capítulo.

Apesar disso, não considere a franquia como um fracasso. Embora isolado do topo do pódio, Silent Hill é comumente tido como a segunda mais importante franquia de terror da história dos videogames. A prova da relevância do nome é que após anos sendo mantido na geladeira, a Konami voltou a investir na série, e o primeiro lançamento, Silent Hill: The Short Message, foi uma surpresa agradável.

Já entre artistas e desenvolvedores de jogos, Silent Hill é considerado lendário. Fatal Frame, Obscure e Kuon são alguns exemplos de franquias que surgiram nos anos 2000 fortemente influenciados pela franquia da cidade misteriosa, mas mesmo em lançamentos atuais, o legado se faz presente desde o cenário indie, como em Back in 1995 (2016) e Tormented Souls (2021), até o mainstream como a franquia Alan Wake e The Medium (lançado em 2021 pela polonesa Bloober Team, que na data desta postagem, finaliza o remake de Silent Hill 2). Isso tudo se nos limitarmos apenas aos primeiros games da franquia; se citarmos o Playable Teaser (P.T.) de 2014, e o modo como a indústria dos games de terror entrou numa desavergonhada corrida para ver quem lançaria o primeiro “clone de P.T.”, a lista é infinita, mas para citar alguns bons exemplos, podemos destacar Visage, MADiSON, Layers of Fear, ou até mesmo SOMA; mas por hoje, já falamos demais e P.T. vai ser assunto para um outro texto ainda este ano, em comemoração aos 10 anos do anúncio do melhor jogo de terror nunca feito, que moldou toda uma indústria sem, sequer, de fato existir.

Gosta de Silent Hill? Jogou desde o primeiro? Vamos conversar nos comentários!