Silent Hill, Bright Falls, Blackwater, Yarnham, Innsmouth… Já vagueei por muitas dessas cidades por conta própria, mas também já ouvi histórias de quem esteve onde ainda não pude ir. O charme dessas memórias é justamente ter de confiar em relatos e alçar a capacidade da imaginação para conceber lugares, pessoas, situações… E músicas.
Em 100 Discos Para Conhecer Aguardela (Pipoca & Nanquim, 2024), Daniel Lopes e Raphael Salimena apresentam uma coleção de discos fictícios documentados em ordem cronológica que nos permite entender melhor a história de uma cidade cujo dia a dia é completamente regido pela música.
Narrado pelos detalhes que devemos caçar nas capas, títulos, letras, artigos ou notas, o livro documenta a trajetória de grandes estrelas locais como Dorinha e Madame Oneide, sem deixar de lado uma consistente lista de músicos de apoio que transparecem competência ímpar. É incrível como todos aqueles nomes ganham rostos, vozes, trejeitos e até sons característicos. Nada me tira da cabeça o desejo de virar amigo de Edison Samaritano e Jorge Amadeu, e que Pachecão, baixista e posteriormente arranjador bastante requisitado, soa como Luizão Maia, fiel escudeiro de Elis Regina que fez história tocando seu Fender Precision com a unha. A vasta criatividade da dupla e o espetáculo visual do traço camaleônico de Salimena quase conseguiram me ludibriar a apanhar o celular para procurar onde Aguardela se situava por mais de uma vez.
Conforme a cena artística da cidade floresce, o advento de outras gravadoras, produtoras e até mesmo da tecnologia parecem gerar conflitos artísticos e comerciais que são exprimidos através de expedientes, artigos e notas. Seria Orione Xisto um aspirante a magnata maníaco por controle que poda a germinante criatividade de seus talentos em busca de controle e de um progresso cinzento? Pode ser que nunca saibamos o que realmente ocorreu, já que somos reféns do ponto de vista de cada um dos envolvidos em eventos que ocorreram há mais de cinquenta anos.
A coletânea também olha para os artistas, perdidos no fogo cruzado das crescentes corporações, e até para aqueles que trocam horas de sono entre expedientes extenuantes por mais trabalho em busca do reconhecimento que parece estar sempre uma esquina à frente. Qualquer um que ostente a dor do criar e precise respirar fundo em frente ao espelho enquanto o resto do mundo dorme e o próprio sangue borbulha ânsia de pôr para fora aquilo que ferve por dentro, vai se emocionar com as páginas finais deste livro concebido por quem vê valor e riqueza na arte de verdade e por fazê-lo, entende quem o faz.
Além de um mundo extremamente detalhado e bastante vigoroso, 100 Discos Para Conhecer Aguardela é um banquete de referências divertidas que vão render horas de conversa com quem é apreciador da música. Beatles, Moraes Moreira, Jeff Beck, Yes, Adoniran Barbosa, Genesis, Rita Lee, David Bowie, Charlie Brown Jr., Vinicius de Moraes e até mesmo filmes, como o clássico japonês do horror House e O Massacre da Serra Elétrica são só algumas delas, e com certeza eu não devo ter percebido nem a metade.
Por fim, vale ressaltar uma terceira peça muito importante na concepção dessa obra: Russo Passapusso, do BaianaSystem, compôs Dora, canção que pode ser ouvida escaneando o QR Code presente em um dos álbuns ou encontrada nas principais plataformas de streaming.
Disco é Cultura.
Além destes textos sobre cinema, música, games, literatura e etc., também escrevo ficção. Conheça meus contos aqui:
https://siudincident.com.br/category/contos/
Obrigado pelo seu tempo, paciência e atenção.